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Estúdio|Lumi Zunica, do Núcleo Investigativo da RECORD

“No Panamá, Cristóvão Colombo relatou ter visto membros de tribos mascando folhas.” A frase da socióloga Sdenka Silva, fundadora do Museu da Coca em La Paz, remete à profunda ancestralidade da folha de coca na América do Sul — incluindo o Brasil.

Utilizada há séculos por povos indígenas, a folha é conhecida por suas propriedades medicinais: combate o cansaço, alivia o “mal de altitude” e ajuda a conter a fome. Ao mesmo tempo, é a matéria-prima da cocaína. E é aí que começa um dos maiores conflitos da história recente do continente.


A tensão entre o uso tradicional e o uso ilícito da coca já dura mais de meio século. Na última década, o avanço acelerado das áreas de cultivo esquentou ainda mais os conflitos, especialmente entre produtores dos departamentos de La Paz e Cochabamba, na Bolívia. Fomos até lá para entender os desdobramentos desse embate e suas consequências.

Folha de coca Lumi Zunica

1961, a proibição

Apesar de seus comprovados benefícios medicinais, o cultivo e a comercialização da folha de coca são proibidos na maior parte do mundo. Apenas três países sul-americanos mantêm exceções legais: Bolívia, Peru e Colômbia


Pien Metaal, especialista em políticas de drogas, explica que o Brasil e os demais países signatários da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, das Nações Unidas, assumiram o compromisso de restringir o o a substâncias classificadas como ilícitas, entre elas, a maconha, o ópio e a folha de coca.

“O cultivo é permitido apenas nesses três países e sob condições bastante específicas”, afirma Metaal.


“Na Colômbia, a autorização vale apenas para territórios indígenas. No Peru, existe um sistema de licenças em que o Estado compra a produção destinada a usos tradicionais e medicinais. Já a Bolívia sempre reconheceu legalmente uma quantidade limitada de cultivo para atender à demanda cultural e histórica do país.”

A proibição internacional vai além do cultivo. A circulação da folha não pode cruzar fronteiras, nem mesmo entre esses países.

O objetivo original da Convenção de 1961 era ambicioso: erradicar o cultivo das três plantas (coca, maconha e papoula) em prazos determinados. A coca deveria ser eliminada em 25 anos; a maconha, em 15.

Para historiadores e sociólogos, o fracasso da convenção está ligado, principalmente, à tentativa de suprimir práticas culturais milenares. A violação do direito dos povos andinos de preservar suas tradições foi, segundo eles, o primeiro o para um conflito que persiste até hoje.

Áreas de cultivo

Colômbia, Peru e Bolívia são, nessa ordem, os maiores produtores mundiais de folha de coca. Na Bolívia, a produção está concentrada em duas regiões distintas: a dos Yungas, no interior do departamento de La Paz, e a do Trópico do Chapare, em Cochabamba — esta última, historicamente associada à influência política do ex-presidente Evo Morales.

Nos Yungas, os produtores se autodenominam guardiões da “coca ancestral”. A folha cultivada na região é considerada mais suave e de melhor qualidade para o consumo tradicional, conhecido como acullico ou boleo — o hábito milenar de mascar a folha formando um pequeno bolo na bochecha. Seu uso está profundamente enraizado em práticas medicinais e culturais.

Já no Trópico do Chapare, região associada ao narcotráfico, a realidade é bem diferente. A folha cultivada ali é maior, mais espessa e intensamente amarga. No entanto, apresenta alto teor de alcaloides, o que a torna especialmente atrativa para a produção de cocaína.

Duas regiões, duas visões sobre a mesma planta: enquanto nos Yungas a coca é símbolo de identidade cultural e resistência ancestral, no Chapare ela está no centro de um mercado marcado por interesses ilícitos e disputas de poder.

Expansão das áreas de cultivo

Até 2017, o cultivo legal de folha de coca na Bolívia era limitado a 12 mil hectares, a maior parte concentrada nos Yungas, região tradicional de produção no departamento de La Paz. Mas um decreto do então presidente Evo Morales ampliou essa área para 22 mil hectares, beneficiando, principalmente, o Trópico do Chapare, em Cochabamba, reduto político do ex-presidente. Segundo dados da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), o aumento representou um salto de 17% nas plantações da área.

Em contrapartida, os Yungas receberam apenas um acréscimo simbólico: de 200 hectares — ando de 15.700 para 15.900. A diferença gerou revolta entre os produtores tradicionais, que acusaram Morales de “cocalizar” a Bolívia e favorecer os interesses do narcotráfico.

Cocalização da Bolívia

René Llojlla, uma das principais lideranças da ADEPCOCA (Associação Departamental dos Produtores de Coca dos Yungas de La Paz), acusa o ex-presidente Evo Morales de ter “cocalizado” a Bolívia a partir de 2017, quando foi ampliada a legalização das áreas de cultivo no Trópico do Chapare.

“Desde 2017, o país vem sendo cocalizado”, critica Llojlla. “O governo adota um discurso ambíguo: diz que combate o narcotráfico, mas, ao mesmo tempo, autoriza novas zonas de plantio sem critérios claros, sem documentação. Na prática, está promovendo a expansão do cultivo e incentivando o narcotráfico”.

Para ele, a chamada “cocalização” abriu espaço para que a coca produzida fora dos Yungas, especialmente no Chapare, abasteça o mercado ilegal.

O Chapare fornece coca para o narcotráfico?

Lumi Zunica, repórter investigativo

Podemos dizer, com outras palavras, que sim. O povo boliviano sabe disso

René Llojlla, uma das principais lideranças da ADEPCOCA

A ampliação das áreas de cultivo e a criação de um mercado paralelo de comercialização da coca aprofundaram o racha entre produtores tradicionais dos Yungas e aliados do governo. O embate gerou uma escalada de tensões, com repressão policial, prisões e feridos. Entre os detidos está César Apaza, um dos principais líderes cocaleiros dos Yungas, preso após protestos contra o novo mercado controlado por grupos ligados ao Chapare.

Apaza, o preso político dos cocaleiros dos Yungas

César Apaza se tornou um símbolo de resistência para os cocaleiros dos Yungas, em La Paz. Preso em 22 de setembro de 2022, permaneceu detido até dezembro de 2024. Onze meses após sua prisão, conseguimos entrevistá-lo dentro da cela, usando câmeras escondidas.

Apaza havia sofrido um AVC na prisão. Debilitado, com dificuldades para falar e prostrado em uma cama, declarou-se vítima de perseguição política: “Sou um preso político. Até hoje não conseguiram provar nada contra mim, e sigo aqui”.

Questionado sobre o tempo em que permanecia preso, respondeu com dificuldade: ”Mais de onze meses”.

Apaza é crítico feroz da lei sancionada durante o governo Evo Morales, que ampliou as áreas legais de cultivo de coca, principalmente no Chapare, região dominada politicamente pelo ex-presidente.

“O governo de Evo, com o poder político e social nas mãos, nos impôs essa maldita lei em 2015″, denuncia.

Querem que o país e o mundo acreditem que se cultivam apenas 7.700 hectares nos trópicos. Mentira! É a maior mentira do mundo. É preciso saber que em Cochabamba, no Trópico, estão as maiores fábricas, as mais mafiosas de toda a América Latina para produção de coca e cocaína.

César Apaza, um símbolo de resistência para os cocaleiros dos Yungas

ADEPCOCA, o mercado dos Yungas

A ADEPCOCA (Associação Departamental de Produtores de Coca) foi fundada em julho de 1983, na cidade de Coripata, no interior de La Paz, como uma alternativa dos produtores para eliminar intermediários e organizar a comercialização da folha de coca.

Hoje, a entidade reúne mais de 43 mil produtores dos Yungas e se consolidou como uma das organizações mais influentes da região andina.

Financiada exclusivamente por pequenas contribuições dos associados, ADEPCOCA istra um complexo com 17 galpões e mantém uma rádio comunitária.

Diversos estudos apontam que cerca de 95% da produção de coca dos Yungas é comercializada legalmente através do mercado de ADEPCOCA, destinado ao uso tradicional (como mastigação, infusões medicinais e rituais culturais). Apenas uma pequena fração da produção acaba desviada para o mercado ilegal e a fabricação de cocaína.

Sacaba, o mercado de Cochabamba

Sacaba, único mercado autorizado em Cochabamba, é um galpão onde a quantidade de folhas comercializada é insignificante quando comparada com seu similar da capital. É evidente que a maior parte das folhas produzidas em Cochabamba, especialmente no Trópico do Chapare, não chega até o mercado oficial.

Mas onde é escoada toda essa produção?

Mercados clandestinos

A socióloga e historiadora Maria Lohman resume em poucas palavras a complexidade do cenário boliviano: “Não é fácil ar esses mercados. Há riscos, há controle. Sabemos que existem diversos mercados paralelos ilegais”.

Para entender melhor esse fenômeno, percorremos a estrada que liga Cochabamba a Santa Cruz, atravessando o coração do Trópico do Chapare, região dominada por plantações de coca e conhecida por sua ligação com o narcotráfico. São seis horas de viagem por um dos corredores mais sensíveis do país.

Durante o trajeto, nosso motorista, profundo conhecedor da região, foi revelando os bastidores por trás de cenas aparentemente banais. Em um trecho, chamou a atenção uma longa fila de carros em um posto de gasolina. Seria escassez de combustível?

Não. Segundo ele, traficantes contratam moradores para comprar gasolina legalmente. O combustível é usado depois no processo de maceração da folha — uma das etapas fundamentais para a produção de cocaína.

Outro cenário recorrente na paisagem do Chapare são os chamados “centros de acopio”: mercados locais que deveriam apenas centralizar a produção de coca antes de enviá-la ao mercado oficial de Sacaba. Na prática, muitos funcionam como pontos de escoamento direto para o narcotráfico.

Conseguimos entrar em quatro desses centros. Lá dentro, a comercialização da folha acontece de forma aberta: balanças à mostra, pacotes empilhados e placas com os preços penduradas nas paredes. Hoje, há pelo menos 33 centros de acúmulo de coca espalhados pelo Trópico do Chapare.

Em Sacaba, entrevistamos Juan Carlos Nina Caballero, dirigente do mercado legal da região. Ele confirmou que, por lei, apenas aquele mercado está autorizado a comercializar a coca cultivada em Cochabamba. No entanto, itiu a existência dos 33 centros paralelos.

Questionado sobre a ilegalidade, reconheceu que a prática pode, sim, alimentar o narcotráfico. “Quem vende fora do mercado legal pode ser sancionado”, disse. “Mas até o momento, nenhum produtor foi punido.”

O problema não se restringe ao Chapare. A menos de um quilômetro da sede da ADEPCOCA, em La Paz, nossa equipe encontrou um galpão onde centenas de produtores vendiam seus taques (pacotes de folhas de coca) longe de qualquer fiscalização. A cena é mais uma evidência da fragilidade do sistema de controle e do desafio em separar o uso tradicional da coca da sua exploração pelo crime organizado.

Boneco com mensagem ameaçadora Bolivianos costumam pendurar bonecos com mensagens ameaçadoras, pois os povoados costumam fazer justiça com as próprias mãos Neste boneco está escrito: ladrão que seja pego, será queimado. Lumi Zunica/ Curo Barros

Conhecendo produtores

Nós fomos até as duas regiões de cultivo. Em La Paz, visitamos os povoados de Coroico, Arapata e Nogalani, os mais tradicionais da capital. Em Cochabamba, estivemos nos povoados do Trópico de Chapare.

Candi e Juan Carlos, casal de produtores, contaram que a venda é fiscalizada começando na própria comunidade que emite uma nota fiscal de transito a ser apresentada ao Exército num posto de controle na estrada chamado “La Rinconada”.

Em Cochabamba, dados da UNODOC revelam que 95% das folhas vão para o narcotráfico.

Estivemos em algumas dessas plantações em áreas afastadas, bosques, estradas de terra. Ninguém quis falar sobre o assunto.

Produtos legais

Na “Calle de las Brujas” ou rua das brujas, em La Paz, encontramos muitas aplicações medicinais e alimentícias. Pomadas e chás para combater a dor nos ossos, artrite, reumatismo, inflamação na próstata, problemas renais, tosse, asma. Também farinhas para preparar bolos, bolachas.

Outros produtos são as balas, refrigerantes e bebidas alcoólicas.

Folha de coca leva bolivianos à prisão no Brasil

Como signatário da Convenção de 1961, Brasil proíbe posse, trânsito, comercialização e consumo da folha. Porém, muitos bolivianos desconhecem essa norma e são presos entrando no Brasil com folhas destinadas a consumo tradicional.

Na Penitenciária de Dois Irmãos de Buriti, no Mato Grosso do Sul, conhecemos um deles: Ruben Chambilla preso em maio de 2023 com 70 kg de folhas. Costureiro, trazia as folhas para consumo próprio e revenda para compatriotas no centro de São Paulo, onde fica a maior comunidade boliviana no Brasil.

Poucos meses depois da nossa entrevista, Ruben recebeu uma sentença favorável e foi solto pela Justiça.

Toda a nossa apuração, incluindo a viagem à Bolívia, resultou em um documentário inédito que estreia neste sábado (31), com exclusividade no PlayPlus.

  • Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
  • Coordenadora de Produções Originais: Renata Garofano
  • Coordenadora de Arte Multiplataforma: Sabrina Cessarovice
  • Repórter Investigativo: Lúmi Zunica
  • Repórter Investigativo: Ciro Barros
  • Editora de Texto: Ana Albini
  • Editor Chefe: Thiago Samora
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