Minuta do golpe, dinheiro vivo e pressão de militares: o que Mauro Cid disse ao STF
STF começou nesta segunda-feira interrogatórios de réus por tentativa de golpe de Estado
Brasília|Gabriela Coelho e Victoria Lacerda, do R7, em Brasília

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, abriu nesta segunda-feira (9) os interrogatórios no STF (Supremo Tribunal Federal) dos réus do chamado “núcleo 1″ de investigados por tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
Durante a sessão, Cid confirmou que, em novembro de 2022, depois de Bolsonaro ter perdido as eleições para Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente recebeu a chamada minuta do golpe, um documento que previa a realização de um novo pleito.
Cid disse que Bolsonaro recebeu, leu e fez alterações no documento, que previa a anulação das eleições de 2022. Segundo ele, Bolsonaro teria “enxugado” o texto original, retirando trechos que mencionavam a prisão de autoridades do Judiciário e do Legislativo.
“O presidente Jair Bolsonaro recebeu e leu esse documento. E fez algumas alterações no documento. De certa forma, enxugou o documento, retirando as autoridades das prisões”, disse Cid.
A minuta, segundo Cid, previa ainda a criação de uma nova comissão eleitoral para organizar um novo pleito, mesmo após o resultado oficial que elegeu Lula. “Seria produzir uma nova eleição baseada numa eleição anulada”, afirmou.
Cid disse que não se aprofundou nos detalhes do conteúdo, mas confirmou que o texto fazia menção a ministros do Supremo Tribunal Federal e a presidentes do Senado e da Câmara. Esses nomes teriam sido retirados por Bolsonaro na tentativa de “suavizar” o decreto, mantendo, no entanto, o ataque direto a Moraes, que à época era presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
De acordo com Cid, após as eleições de 2022, Bolsonaro era pressionado por três grupos distintos:
- Um grupo conservador, de linha política, que aconselhava Bolsonaro a “dizer para o povo sair da frente dos quartéis”;
- Um grupo moderado, que, embora entendesse que o “caminho que o Brasil estava indo estava errado”, afirmava que “nada poderia ser feito diante do resultado das eleições”. Os também réus Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto faziam parte deste grupo, segundo Cid;
- Um grupo radical, que tentava convencer o presidente a “fazer alguma coisa, um golpe”. Esse grupo “romantizava” o artigo 142 da Constituição Federal como fundamento para o golpe de estado. O réu Almir Garnier foi classificado neste grupo.
Aposta em fraude ou pressão popular
Segundo Cid, o ex-presidente estava convencido de que encontraria uma fraude nas eleições de 2022, o que não se confirmou. “Sempre se teve a ideia de que pudesse, até o final do mandato, aparecer uma fraude real nas urnas. Tanto que em todas as minhas mensagens, que foram abertas como parte da investigação, eu falo que não foi encontrada fraude, que tudo ficou no campo da estatística”, disse.
Mauro Cid relatou ainda que Bolsonaro não queria que os manifestantes deixassem as ruas após as eleições. “Ele não queria que o pessoal saísse das ruas”, afirmou, referindo-se aos acampamentos em frente aos quartéis. “A primeira hipótese era encontrar fraude nas eleições. A outra, por meio do povo radical, encontrar uma fórmula que permitisse reverter a situação.”
Ainda de acordo com Cid, em momento algum foi apresentada qualquer prova concreta de fraude nas urnas. “O que aparecia era só estatístico. Os dados eram tirados do TSE, trabalhados em computadores, para tentar achar alguma coisa que pudesse levar a uma forma [de contestação]. Mas não se conseguiu comprovar nada.”
Bolsonaro sabia que, sem fraude comprovada nas eleições, nada aconteceria
Cid afirmou que Bolsonaro sabia que, sem a comprovação de fraude nas eleições, não haveria espaço para qualquer tipo de ação institucional contra o resultado das urnas.
“A questão era: se não houvesse fraude, nada ia acontecer. Se houvesse fraude, ele agiria. Essa era a lógica. ‘Não foi encontrada a fraude, nada vai acontecer’, foi o que ele repetiu em diversas mensagens a diferentes interlocutores.”
Segundo Cid, essa avaliação era compartilhada desde o início com aliados e militares próximos. “Logo no começo, lembro que comentei isso em mensagens com o general Cavalieri e com o general Antonio Amarante. Porque eu sabia qual era a posição das Forças Armadas. Independente do que acontecesse nas eleições, dificilmente algo seria feito. Sem o apoio das Forças Armadas, não teria como seguir com nada.”
Ele também destacou que Bolsonaro estava fragilizado fisicamente na época e que isso era motivo de preocupação entre os militares próximos.
“O presidente estava muito fragilizado na parte de saúde. O próprio general Heleno expressava grande preocupação com isso.”
Cid afirmou que, embora houvesse tensão e expectativa entre apoiadores, Bolsonaro nunca verbalizou diretamente uma ordem ou plano condicionado à fabricação de uma fraude.
“Ele nunca disse: ‘Temos que achar uma fraude’ ou ‘Precisamos forjar algo para decretar alguma coisa’. Não havia esse tipo de condicionante explícito da parte dele.”
Mauro Cid nega ter conhecimento de discurso que seria lido por Bolsonaro para dar golpe
Mauro Cid foi questionado sobre um documento que tratava da decretação de estado de sítio e da ativação de medidas excepcionais no contexto constitucional, como operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).
“O documento tratava especificamente de estado de sítio, de operações de GLO. Pelo que entendi, foi montado em um celular e depois abandonado. A única coisa que apareceu no meu celular, no ‘Salve’, foi aquele texto da foto, que foi apreendido na sala do ex-presidente. Mas esse texto tratava muito do povo, da mobilização do povo.”
Cid afirmou não ter recebido nem tomado conhecimento de um suposto discurso que Jair Bolsonaro faria para anunciar as medidas: “Nunca recebi esse discurso que o presidente supostamente teria que fazer. Também não vi e não ou por mim.”
Cid confirma que recebeu dinheiro vivo de Braga Netto
Cid confirmou ter recebido dinheiro vivo de Braga Netto depois das eleições de 2022 para supostamente bancar as manifestações em frente aos quartéis do Exército.
Ao longo do depoimento, o tenente-coronel disse não saber que, na verdade, aquele dinheiro teria servido para o planejamento de um suposto plano para ass autoridades, entre elas o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes. Essas informações foram reveladas por investigação da Polícia Federal.
“Inicialmente, isso, para mim, estava dentro de um contexto de uma manifestação que, teoricamente, era algo que o Exército aceitava — inclusive com respaldo legal e legítimo — e que, de alguma forma, tinha apoio dos militares. Tudo o que foi tratado, para mim, estava sendo direcionado àquelas manifestações. Então, na minha cabeça, eu entendi que era um dinheiro para tentar ajudar, trazer manifestantes, para a manifestação, para reforçar a presença. Eu não interpretei como algo voltado a tentar ou planejar qualquer outra coisa. Por isso, não achei essa informação relevante", declarou Cid.
Sobre a entrega do dinheiro, Cid comentou que o major do Exército Rafael de Oliveira o procurou afirmando que estava “precisando de dinheiro, precisando de recurso para alguma coisa”. Cid foi atrás de Braga Netto, que recomendou ao tenente-coronel procurar o PL (Partido Liberal) para tentar conseguir apoio financeiro.
Cid revelou que procurou o tesoureiro do PL, mas foi informado de que o partido “não poderia bancar aquilo ali”.
O tenente-coronel deu esse retorno a Braga Netto, que depois de algum tempo decidiu entregar dinheiro em espécie a Cid em uma sacola de vinho.
“O general Braga Netto trouxe uma quantia em dinheiro, que eu também não sei precisar quanto foi, mas com certeza não eram os R$ 100 mil, porque, pelo volume, não parecia tanto. Devia ser menos. E essa quantia foi entregue ao major de Oliveira, no próprio Alvorada”, detalhou Cid.
“Minha ideia é que esse dinheiro vinha do agronegócio, que estava ajudando a manter as manifestações”, acrescentou.
Ainda segundo Cid, Braga Netto era um elo importante com os manifestantes. Após o 2º turno das eleições, Cid comentou que Bolsonaro ficou “muito recluso no Palácio da Alvorada”, Braga Netto era quem ia constantemente para atualizar o presidente sobre o que estava acontecendo.
Cid afirmou que o núcleo interno da Presidência da República não mantinha contato com líderes ou financiadores de manifestações, mas “quem quem trazia as informações atualizadas do que estava acontecendo era o general Braga Netto”.
Ex-comandante da Marinha deixou tropas à disposição
No interrogatório, Cid confirmou que o ex-comandante da Marinha Almir Garnier tinha colocado as tropas da força à disposição do então presidente para um eventual golpe militar.
Segundo Cid, a atitude de Garnier causou chateação ao ex-comandante do Exército Freire Gomes, porque Garnier havia transferido a responsabilidade de um suposto golpe para ele, afirmando que só poderia fazer algo com o apoio do Exército.
“O general Freire Gomes tinha ficado muito chateado, porque o almirante havia colocado as tropas e a Marinha à disposição do presidente, mas disse que só poderia fazer alguma coisa com o apoio do Exército. Então, o general Freire Gomes ficou muito chateado por ele ter transferido a responsabilidade para ele.”
Pressão para trocar chefe do Exército
Segundo Cid, havia uma “pressão grande” com a ideia de que, se Freire Gomes não tomasse nenhuma medida para um golpe militar, “uma alternativa seria trocar os comandantes para que o próximo comandante do Exército assinasse ou tomasse uma medida mais dura e radical”.
Cid detalhou que alguns nomes sugeridos para o lugar de Freire Gomes foram os dos generais Júlio César Arruda e Estevam Theophilo. “Existia essa pressão para que se o general Freire Gomes não tomasse alguma atitude, que colocasse militares que poderiam tomar essa atitude.”
General cotado para o Exército disse que cumpriria eventual ordem de Bolsonaro para golpe militar
De acordo com Cid, Theophilo teve uma reunião com Bolsonaro em novembro de 2022. Cid disse não saber o teor da conversa que o militar teve com o ex-presidente, mas revelou que depois trocou mensagens com o general, que disse que cumpriria uma eventual ordem de Bolsonaro para um golpe militar.
“Eles [os militares] não fariam nada que quebrasse um elo de legalidade. Então, para que alguma coisa fosse feita, teria que haver uma ordem — e essa ordem teria que vir do presidente”, detalhou Cid.
“Era nesse sentido que ele [Theophilo] falava: ‘Olha, se você , o Exército vai cumprir’ — mas não que ele fosse cumprir ou tomar a iniciativa”, completou.
Cid acrescentou que, no meio militar, havia a ideia de que, se alguém fosse liderar a execução final de um golpe, seria o general Theophilo.
Explicações sobre áudios vazados
Na audiência, Cid disse que estava em uma situação “devastadora” pessoal e emocional quando gravou áudios nos quais aparece criticando a própria delação premiada. Segundo ele, os trechos em que relata suposta pressão da Polícia Federal e do Supremo para incluir fatos que não seriam verdadeiros foram apenas desabafos com amigos — e não acusações formais.
“Foi um desabafo. Eu não lembro o quão difícil eu e minha família estávamos ando”, disse Cid. “Mensagens de áudio da minha filha sendo vazadas, matérias, esforços pessoais… Estava muito tensa [a situação]. Eu, dentro da minha carreira, desabando. Minha vida financeira, acabada. Isso gerou uma crise pessoal, psicológica muito grande.”
Segundo ele, naquele momento, havia incertezas sobre sua permanência no Exército e angústia sobre o futuro da família. “Inclusive a minha promoção naquele momento, se eu ia ser promovido ou não… Então, aquilo foi me fazendo mal. Então, eu estava fazendo mais um desabafo com um amigo — não sei qual. Não sei como esses áudios vieram parar na mão da mídia.”
Durante a audiência, Cid também foi questionado sobre a sequência de depoimentos que prestou à Polícia Federal. Ele afirmou que os quatro relatos prestados serviram principalmente para confirmar informações já levantadas pelos investigadores e para reconhecer pessoas, locais e fatos.
“Era mais para colaborar com o que a Polícia Federal já tinha levantado. Era um reconhecimento, dizer se eu sabia ou não daquele fato, ou se aquilo tinha acontecido naquele local. Então foi mais para confirmar tudo o que eu já tinha dito.”
Ele negou que tenha sido pressionado formalmente pelas autoridades a incluir fatos inverídicos na colaboração. Nos áudios que vazaram, no entanto, Cid fala em pressão por parte da PF e do STF. Agora, ele diz que as falas foram gravadas em um momento de forte desgaste emocional e sem intenção de questionar oficialmente a investigação ou a validade da delação.
Dinâmica do interrogatório
As audiências estão sendo realizadas presencialmente na corte. A única exceção é o interrogatório do general Walter Braga Netto, que será feito por videoconferência, já que o militar está preso.
Os interrogatórios ocorrem na sala da Primeira Turma do STF. O ministro Alexandre de Moraes, que conduz o processo, se senta ao centro da mesa de ministros e é responsável por conduzir as audiências.
Nesta fase processual, os questionamentos seguem a seguinte ordem: primeiro fala o juiz instrutor, ministro Alexandre de Moraes; depois, o procurador-geral da República; e, por fim, as defesas dos corréus — sempre seguindo a ordem alfabética dos réus.
À frente de Moraes, há uma mesa com dois lugares, onde se sentam o réu da vez e seu advogado. Atrás, foram organizadas oito mesas individuais, separadas por cerca de um palmo, para acomodar os demais réus e seus advogados.
Nas fileiras anteriores, podem se posicionar outras bancas de advogados. Nas laterais superiores da sala, à direita e à esquerda, estão os profissionais da imprensa.
Ordem dos réus na sala
Os réus estarão sentados da direita para a esquerda, na seguinte ordem:
- Mauro Cid, delator e ex-ajudante de ordens da Presidência;
- Alexandre Ramagem, deputado federal e ex-diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência);
- Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha;
- Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal;
- Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional;
- Jair Bolsonaro, ex-presidente da República;
- Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa;
- Walter Souza Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil.
Calendário dos interrogatórios
Caso seja necessário, o ministro Alexandre de Moraes já designou datas adicionais para dar continuidade às audiências:
- 10 de junho, das 9h às 20h;
- 11 de junho, das 8h às 10h;
- 12 de junho, das 9h às 13h;
- 13 de junho, das 9h às 20h.
O ministro deixou claro que os réus têm o direito constitucional de falar ou permanecer em silêncio.
Na quinta-feira (5), Moraes negou um pedido da defesa do general Walter Braga Netto para suspender os interrogatórios. A defesa alegou não ter tido tempo suficiente para analisar mídias, áudios e vídeos apreendidos pela Polícia Federal e solicitou que os interrogatórios ocorressem apenas após oitiva das testemunhas dos demais núcleos investigados — o que foi rejeitado.
Após os interrogatórios, Moraes elaborará o relatório final do caso e apresentará seu voto para julgamento. A conclusão dessa etapa ainda não tem data definida. Quando finalizado, o processo será liberado para inclusão na pauta do STF.
A expectativa é de que o julgamento do “núcleo 1″ ocorra entre setembro e outubro deste ano.
Fique por dentro das principais notícias do dia no Brasil e no mundo. Siga o canal do R7, o portal de notícias da Record, no WhatsApp